. Quinta Elegia com versos de vanguarda, imitando os telhados das casas do bairro londrino de Chelsea e misturando português e inglês; fez versos dentro da métrica e dicções populares como O Operário em Construção; os seus primeiros poemas são neo-simbolistas, e, ao meio da obra, faz um livro de sonetos num estilo clássico-romântico. A análise global da obra de Vinícius de Moraes pertence tanto aos estudos literários propriamente ditos quanto aos da música popular, tanto que em seu disco Canção do amor demais suas canções vieram assinadas "Música: Antônio Carlos Jobim; Poesia: Vinícius de Moraes". É como se Vinícius estivesse dizendo, (em 1958, época em quem era impensável um diplomata e poeta se envolver com música popular) que aquelas letras eram poemas. Chega de Saudade, conta alguns episódios em que notamos a presença da literatura nas vidas dos compositores da Bossa Nova. Num desses momentos, Ruy Castro nos relata as histórias contadas por João Gilberto enquanto ia de sua casa até ao apartamento de Ronaldo Boscoli. Em uma delas dizia que a poesia de Carlos Drummond de Andrade era claramente a sua favorita, e também recitava, de cor, trechos inteiros das Cartas a um jovem poeta, do alemão Rainer Maria Rilke, obra cuja leitura Manuel Bandeira sempre indicava para poetas principiantes quando perguntado sobre o que deveriam fazer para escreverem bons poemas e serem bons poetas, como nos conta em seu Itinerário de Pasárgada. Segundo Ruy Castro, "Literatura era uma preocupação remota dos músicos, inclusive cantores, e era inédito ouvir um deles citando escritores com tanto desembaraço. (CASTRO: 1990, p.138) Revista de Música Popular Brasileira, dirigida por Lúcio Rangel e Pércio Moraes, na década de 50 – mais precisamente de 1954 a 1956 – com a passagem de Vinícius de Moraes para a série musical e o surgimento da Bossa Nova é que se observaria uma ligação mais sistemática entre música popular e poesia no Brasil, no século XX: . Tendo, assim, os significados de um texto uma relação estrita com a música propriamente dita, o conhecimento das modificações das letras pelos aspectos musicais é portanto extremamente importante para o entendimento correto do texto de uma canção. (ver PERRONE: 1988, p.12) Morte e Vida Severina por Chico Buarque, no jornal O Globo de 27/10/73, vai nos dizer que quando viu seu auto de Natal encenado em Nancy, no ano de 1966, pelo Tuca, se sentiu deslumbrado e que o sucesso da peça se deveu, noventa por cento, à música. Morte e Vida Severina, Chico Buarque também vai falar sobre seu processo de criação, dizendo que procurou status de textos poéticos, uma vez atestada a sua qualidade literária. Não é difícil citar contradições entre o autor e o eu poético, no que diz respeito à intenção do fazer artístico, em algumas de suas composições, como por exemplo "Choro bandido", em que vemos: "Mesmo que você fuja de mim/Por labirintos e alçapões/Saiba que os poetas como os cegos/Podem ver na escuridão", e também em "Noite dos mascarados", em que vemos o eu poético se denominar poeta e cantor: "Eu sou seresteiro/Poeta, cantor". letra da música popular, surgindo daí ensaios, teses e livros dedicados a ela. De acordo com Afonso canções malandras que são feitas por Chico Buarque: samba duplex feita por Chico Buarque é a famosa canção "Apesar de Você". samba duplex que possibilita uma dupla leitura da canção, não podem ser vistas somente como um artifício utilizado por ele para driblar a ditadura, mas também, como um discurso poético criado através do cuidado minucioso, do trabalho e da depuração que exige a expressão poética. Violão de Rua. . Essa sua técnica de fazer premeditadamente letras que admitem várias leituras é de grande valor, pois, como dissemos, um artista é tanto mais rico quanto forem as leituras cabíveis em sua obra. rock, em "Baioque"; o fado, em "Fado tropical"; o samba, em "Tem mais samba"; a marcha, em "A banda"; o chorinho, em "Um chorinho"; a quadrilha, em "A quadrilha"; o tango, em "Tango do covil", e o mambo em "Mambordel"; o blues, em "Bancarrota blues", entre outros exemplos. de Cecília Meireles. Também percebemos a forte influência da poesia de João Cabral em "Construção" e "Baioque", canções que utilizam a sensibilidade arquitetônica do poeta pernambucano. As canções "Até o fim" e "Flor da Idade", possuem conexões diretas com os poemas de Drummond; "Poema das Sete Faces" e "Quadrilha", respectivamente. Em "Fantasia", temos a ressonância de um dos poemas mais conhecidos de Fernando Pessoa, "Autopsicografia" (Ver PERRONE, 1988. capítulos 3 e 5). Em seu CD, As cidades, estão presentes mais duas referências literárias diretas: Iracema, de José de Alencar, em "Iracema voou" e alguns personagens de Guimarães Rosa: Manuel e Miguilim, em "Assentamento", canção que dialoga perfeitamente com a obra do escritor mineiro. Nesta canção, temos como epígrafe um trecho da obra de Rosa: "Quando eu morrer, que me enterrem na beira da Chapadão – contente com minha terra, cansado de tanta guerra, crescido do coração." Este trecho ainda está presente na canção. Roda Viva (1968), que inclui canções homônimas. Em 1965, Chico Buarque vai musicar parte de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, trabalho que, segundo o compositor, garantiu-lhe "que melodia e letra devem e podem formar um só corpo". Nesta declaração do compositor, podemos notar sua preocupação com a integração de letra e melodia ou poema e música, preocupação que posteriormente aparecerá em Calabar e na Ópera do Malandro, esta última inspirada na obra de John Gay, Beggar´s Ópera, de 1728 e na obra de Bertolt Brecht e Kurt Weill, Three Penny Opera, de 1928. ZAPPA, Regina. , temos um eu - lírico que observa – como um voyeur – a Almanaque – pode ser comparada a um poema concreto por causa da disposição da letra que é refletida de cabeça para baixo e de trás para frente, dando a impressão de estarmos vendo as múltiplas imagens que os vidros das vitrines refletem. Também em "Pedaço de mim", Chico Buarque cria uma das imagens mais belas da língua portuguesa para representar a saudade, sentimento tão caro a nós brasileiros e aos portugueses: "Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu". Pequena História da Música. São Paulo: Livraria Martins, 1991. História do Modernismo brasileiro: antecedentes da semana de arte moderna. 3ªed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971. Balanço da bossa e outras bossas. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1974. Chico Buarque: análise poético musical. 2.ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1982. Chega de saudade: a historia e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Poesia e política nas canções de Bob Dylan e Chico Buarque. São Paulo/ São Carlos: Editora UFSC; Estação Liberdade, 1993. Sem fantasia: masculino e feminino em Chico Buarque. Rio de Janeiro: Graphia, 1999. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. . Saco de gatos: ensaios críticos. São Paulo: Duas Cidades, 1976. Chico Buarque: letra e música. (Humberto Werneck, org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (Songbook) . Impressões de viagem. São Paulo: Brasiliense, 1980. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 1991. Balanço da Bossa e outras bossas. (Org.: Augusto de Campos) São Paulo, Perspectiva, 1978. Música popular e comunicação. Petrópolis: Vozes, 1973. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Ed. Hucitec, 1987. Literatura e Sociedade, São Paulo: USP, 1997. N.º 2. A literatura portuguesa. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1996. História: questões e debates, n. 28. Rio de Janeiro: Ed. UGRJ, 1998. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. O arco e a lira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Letras e letras da MPB. Rio de Janeiro: ELO, 1988. SENHOR VOGUE: 03-1979. Revista USP, São Paulo, dezembro/ janeiro/ fevereiro, 1989/90. n. 4. Revista Livro Aberto, São Paulo, março/abril, 1998. n.7. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980. O canibalismo amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1995. A poética de Chico Buarque: a expressão subjetiva como fundamento da significação na poesia de Chico Buarque. Rio de Janeiro: Sophos Editora Ltda, 1974. Literatura e Sociedade, São Paulo: USP, 1997. n.2. Revista Livro Aberto, São Paulo, março/abril, 1998. n. 7. A canção: eficácia e encanto. São Paulo: Atual, 1987. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996. Música popular - um tema em debate. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 1997. Pequena história da música popular. São Paulo: Circulo do livro, s/d. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 1995. Anos 70 – música popular. Rio de Janeiro: Europa, 1979/80. Jornal Movimento, São Paulo, 06, Dezembro, 1976. Teoria e Debate. São Paulo, julho/agosto/setembro, 1997.
A relação entre música e poesia vem desde a antigüidade. Na cultura da Grécia Antiga, por exemplo, poesia e música eram praticamente inseparáveis: a poesia era feita para ser cantada. De acordo com a tradição, a música e a poesia nasceram juntas. De fato, a palavra "lírica", de onde vem a expressão "poema lírico", significava, originalmente, certo tipo de composição literária feita para ser cantada, fazendo-se acompanhar por instrumento de cordas, de preferência a lira.
A partir de então, configuraram-se muitos momentos em que a música e a poesia se uniram. Segundo Antônio Medina Rodrigues, "a grande poesia medieval quase que foi exclusivamente concebida para o canto. O Barroco, séculos além, fez os primeiros ensaios operísticos, que iriam recolocar o teatro no coração da música. Depois Mozart,
∗
Doutor em Teoria e História Literária /UNICAMP, bavarov@terra.com.br com a Flauta mágica ou D. Giovanni, levaria, como sabemos, esta fusão ao sublime." (RODRIGUES: 1990, p.28).
Durante muito tempo, a poesia foi destinada à voz e ao ouvido. Na Idade Média, "trovador" e "menestrel" eram sinônimos de poeta. Seria necessário esperar a Idade Moderna para que a invenção da imprensa, e com ela o triunfo da escrita, acentuasse a distinção entre música e poesia. A partir do século XVI, a lírica foi abandonando o canto para se destinar, cada vez mais, à leitura silenciosa.
Entretanto, mesmo separado da música, o poema continuou preservando traços daquela antiga união. Certas formas poéticas, ainda vigentes, como o Madrigal, o Rondó, a Balada e a Cantiga aludem diretamente às formas musicais. Se a separação de poetas e músicos dividiu a história de um gênero e outro, a poesia não abandonou de vez a música tanto quanto a música não abandonou de vez a poesia.
A música erudita do Ocidente, com Bach, Mozart, Beethoven, Mahler, etc., dispensara a palavra, mas a ópera conservou a velha comunhão entre a música e a poesia. Os libretos correspondem a textos poéticos a partir dos quais o compositor escreve músicas. Uma variante da ópera, a opereta, que fez muito sucesso no século XIX, acabou reforçando ainda mais a combinação da palavra com a música. Na mesma época, floresceu, na Alemanha, um tipo de composição chamada "lied", ou seja, pequena peça poético-musical feita para execução em voz e piano.
Em obras camerísticas, como as de
Schubert, por exemplo, compositor cuja obra mais importante são os Lieder para canto e piano, usou textos de Goethe e Schiller ao invés de subliteratura. A mesma coisa ocorre com Bach, que em suas cantatas de câmara recorreu a textos bíblicos, com Hugo Wolf (textos de Michelangelo, Moerike) e com Ravel (textos de Ronsard e Villon). As condições de contato humano oferecidas pelas manifestações musicais de câmara exigem do compositor não só um tratamento musical mais apurado e detalhístico, mas também um maior cuidado na escolha dos textos, pois o seu conteúdo, dada essa estreita relação intérprete-público, se evidencia muito mais. (MEDAGLIA: 1986, p.83)
Neste estudo, pretendemos refletir sobre a união mais recente que ocorreu entre a poesia e a música no Brasil, nos anos 60/70, enfocando, especialmente, a contribuição feita por Chico Buarque de Holanda para a união dessas duas artes irmãs.
A música popular é, reconhecidamente, uma das expressões mais altas da cultura brasileira. As condições históricas e sociais em que temos existido não permitiram à nossa literatura se expressar de forma devida a toda, ou pelo menos grande parte, da população de nosso país. A música popular, então, dentro de suas naturais limitações, foi levada a assumir tarefas que normalmente deveriam caber à literatura. Coube-lhe o desafio de dominar e expressar, mesmo tendo de driblar a censura, o preconceito intelectual elitista, entre outros, uma vasta e complexa realidade cultural de nosso país.
No Brasil, os compositores nas décadas de 20 e 30 já contavam com elementos da indústria moderna como o rádio, os discos, o cinema, além do teatro e do carnaval para divulgarem sua arte.
na década de 30, especialmente, a música popular, ou melhor, o samba, já não é uma atividade característica de ex-escravos ou de negros e mestiços em ascensão social. Começam a surgir os primeiros compositores brancos de importância como, Noel Rosa, que chegou a ser acadêmico de Medicina, e Ari Barroso, estudante de Direito, formado em 1930 na mesma turma de Mário Reis, sendo que este, no dizer de José Ramos Tinhorão, era "moço de sociedade, acadêmico de Direito e jogador de tênis". Nessa época é que surge também Orestes Barbosa, que como moleque de rua foi amigo de João da Baiana, mas que tinha uma formação literária mais pretensiosa, pois, adolescente, publica Penumbra Sagrada, livro de versos que mereceu elogios de Agripino Grieco. Orestes, aquele do "e tu pisavas os astros distraída" – verso que Manuel Bandeira achava dos mais belos de nossa língua, além de jornalista tinha pretensões a uma carreira literária, chegando a candidatar-se à Academia Brasileira de Letras. (SANT’ANNA: 1978, p.187)
Destaca-se também, por vários estudiosos da MPB, que a música popular ajudou a realizar a proposta Modernista de atualização da cultura brasileira ou a atualização de sua linguagem, deixando-se de lado a linguagem "bacharelesca empostada" que era cultivada e caracterizada como a linguagem própria do discurso artístico. A MPB conseguiu grande parte de seu êxito através de uma maior facilidade de chegar até o povo. Justamente por causa de sua utilização dos meios modernos de comunicação.
Na década de 30, uma aproximação possível entre música e literatura pode ser notada entre a música de Ari Barroso e a produção ufanista exemplificada em Cassiano Ricardo, especialmente em Martim Cererê. Mas será na década de 50 que a música
popular vai se encontrar com a poesia literária através da figura de Vinícius de Moraes, que migra da poesia para a música.
Vinícius de Moraes originalmente vem da série literária. Diplomata de carreira, aluno de literatura na Inglaterra, escreveu a
As construções poéticas de Vinícius de Moraes recuperam o tom coloquial carioca, excluindo a oratória da música popular anterior, reencontrando assim o cotidiano prosaico para a música popular, a economia vocabular, versos reduzidos, jogos sonoros, utilizados na técnica literária própria da Bossa Nova. As canções de Vinícius foram modelares para letristas jovens como Ronaldo Boscoli, Carlos Lira, Johnny Alf, Tom Jobim, entre outros, exercendo uma influência avassaladora nos novos compositores. A partir de Vinícius de Moraes, a música popular alcança um prestígio jamais conseguido, incentivando os jovens a assumirem a carreira musical com maior dignidade.
Não há dúvida de que a simples presença de um poeta largamente respeitado contribui para que a música popular passasse a ser mais levada em conta no cenário artístico tanto por parte dos produtores quanto por parte dos consumidores. Vinícius é uma figura de transição muito importante, uma ponte histórica, que consegue adaptar a música ao verso, traz nova sofisticação à arte da canção, estimula a reação do público à poesia tocada e cantada, e fornece modelos gerais de dicção e expressividade a serem imitados por outros letristas. Ele consegue criar uma junção entre as esferas da música e da literatura dos anos 60. Vinícius constrói um palco de comunicação músico-poética no Brasil contemporâneo em cima do qual muitas outras figuras iriam, mais tarde, criar. (PERRONE: 1988, p.28)
Ruy Castro, em seu livro
Segundo Afonso Romano de Sant’anna, somente com a criação da
o importante nessa revista é a aproximação entre a literatura e a música popular através do veio jornalístico dos cronistas Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto e outros escritores como Millor Fernandes, Manuel Bandeira, Onestaldo Penaforte, Vinícius de Moras e até textos antigos de Mário de Andrade. Esses autores se reúnem com Ary Barroso, Nestor de Holanda, Fernando Lobo, Haroldo Barbosa e outros como o jovem Hermínio Bello de Carvalho, (...) (SANT’ANNA: 1978, p.213)
Na década de 60, a música popular emerge como um importante veículo de poesia. A MPB vem dialogar com o que há de mais característico na tradição da arte moderna, fazendo uso em suas composições da paródia, da colagem textual e musical, da metalinguagem, etc. A qualidade poética da MPB se torna tão evidente que vários estudiosos da poesia brasileira chegam a dizer que se quisermos estudar a poesia desta geração, não poderemos deixar de lado os "textos" de compositores da MPB, como os de: Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Capinam, Torquato Neto, etc. Pois a MPB foi uma manifestação artística que exerceu influência decisiva no meio cultural do
país, tanto na linguagem quanto no comportamento de amplos setores da juventude urbana.
Como bem frisamos, em grande parte da história, a poesia e a música sempre foram expressões artísticas que se utilizaram de técnicas semelhantes para se realizarem formalmente, tendo como traço estrutural mais comum o ritmo. No entanto, será justamente o ritmo que vai se opor à poesia da música ou vice-versa, pois cada uma das duas artes adquiriu seu ritmo próprio. A música se utilizará mais intensamente do ritmo para se construir esteticamente, sobrepondo-se à palavra propriamente dita. A música pode se realizar de forma que o seu ritmo ganhe mais importância que o texto. Nem toda música precisa de um texto belo para que agrade a seu ouvinte. O canto pode utilizar-se do puro dinamismo fisico-psíquico para se realizar enquanto obra artística, mas a poesia, além da necessidade rítmica, precisa (pelo menos na maioria das vezes) dos processos de pensar por meio de palavras, para se realizar esteticamente.
A voz humana quando oral ou musical, tem exigências e destinos diferentes. Música e poesia têm exigências e destinos diferentes, que põem em novo e igualmente irreconciliável conflito a voz falada e a voz cantada. A voz cantada quer a pureza e a imediata intensidade fisiológica do som musical. A voz falada quer a inteligibilidade e a imediata intensidade psicológica da palavra oral. Não haverá talvez conflito mais insolúvel. A voz cantada atinge necessariamente a nossa psique pelo dinamismo que nos desperta no corpo. A voz falada atinge também, mas desnecessariamente, o nosso corpo pelo movimento psicológico, que desperta por meio da compreensão intelectual. Dois destinos profundamente diversos, para não dizer opostos. (ANDRADE: 1991, p. 32-3)
É nesta diversidade que música e poesia têm vivido. Até quando uma canção pode ser considerada bela, mesmo com sua letra sem uma construção verbal formalmente bem construída? Uma canção musicalmente e verbalmente construída seria melhor do que a só musicalmente bem construída? Acreditamos que a canção verbal e musicalmente bem construída seria melhor elaborada enquanto obra de arte, mas, no entanto, a canção apenas bem construída musicalmente também tem seu valor enquanto obra de arte, cumprindo sua função mais básica, a de emocionar o seu ouvinte. Como bem nos diz Mário de Andrade: "... não é o texto belo e profundo que provoca no compositor as mais belas e profundas melodias. Conta-se por centenas de melodias
lindíssimas sobre textos boçais." (ANDRADE: 1991, pp.33-4) Como é o caso, por exemplo, de existirem compositores de MPB que são considerados bons compositores e, poetas ruins. O poder da melodia é tão grande que ela pode sustentar palavras ocas, vazias, que, quando colocadas no papel, sem o auxílio da melodia, não funcionam como poesia. Na música popular pode ocorrer o caso dos compositores focalizarem mais o ritmo que as palavras, ou vice-versa. A popularidade de uma música pode estar muito mais ligada à natureza da própria música do que dos aspectos da letra. As palavras podem ser apenas parte do som total.
O bom letrista leva em conta e explora o fato de que a letra vai ser ouvida e não lida, (é claro que com as devidas exceções, há compositores que transformam os simples encartes de seus discos em folhetos poéticos, com diagramações cuidadosas e experiências formais realmente feitas para serem vistas e lidas, e não somente para serem ouvidas) e o poeta livresco leva em conta e explora o fato de que o poema vai ser lido, considerando, é claro, a musicalidade que é própria da arte poética. Se tais diferenças fossem decisivas, porém, não poderíamos hoje apreciar a poesia da Grécia Antiga, por exemplo: poemas, como sabemos, construídos para serem cantados.
Com o advento das tecnologias modernas como o rádio, o disco, etc. as coisas mudaram radicalmente. A música ligada à poesia pode agora circular ainda mais ampla e rapidamente do que a palavra escrita, pois ela tem um alcance, um poder de atração muito maior, principalmente no Brasil, que tem um público leitor escasso.
O que percebemos é que os grandes artistas da MPB sempre se preocuparam com essa questão, optando, para suas construções musicais, pelo entrelaçamento da música com a poesia, como é o caso exemplar de Chico Buarque, entre outros compositores da nossa música popular.
A principal dificuldade na união da palavra com a música consiste na acomodação fonética dum texto quando cantado para a música em que este texto é acoplado. Para o desenvolvimento da canção, no sentido completo do termo, o texto e a melodia devem ser considerados igualmente importantes. Chico, em suas entrevistas, declara compor conjuntamente letra e música: suas canções são a união de letra e música. Uma das mais constantes perguntas feitas a Chico Buarque sobre seu modo de
composição refere-se à capacidade de sustentação de suas letras (sem a música) enquanto poema ou se letra e música dependem uma da outra. O compositor nos diz, com extrema segurança, como é feito seu trabalho artístico, que para ele, música e poesia são coisas distintas, e que uma não é menos digna do que a outra, e que a música e a letra na música popular são coisas que andam juntas:
Eu não concordo com essa colocação, pelo fato mesmo que o meu ofício é outro, é o do artista que faz música e letra, coisas muito ligadas uma à outra. Eu discordo dessa coisa dos caras às vezes quererem elogiar dizendo: "Para mim você não é um compositor é um poeta", como outra qualquer, e eu desafio os poetas maiores a fazerem letras de música, porque é uma parada diferente. Não escrevo poesia, não gosto de ler minhas letras publicadas em forma de poesia. É outra coisa para mim, como também não gosto das músicas sem as letras. São feitas juntas, nasceram juntas, têm que caminhar juntas. (SENHOR VOGUE: 03-1979)
O processo de criação da poesia musical é bem diferente do da poesia impressa; uma não é melhor do que a outra: são apenas diferentes. O processo da primeira é, pelo menos, mais sofisticado, isto porque quando se criam música e poesia juntas, está-se trabalhando num processo (teoricamente) mais complexo do que criar a poesia somente.
No entanto, Mário de Andrade nos diz que certos ritmos poéticos como
A análise das canções da MPB do ponto de vista literário pode ser beneficiada se analisarmos a palavra e melodia conjuntamente, já que a integração dos dois elementos é essencial para que a canção se realize de forma integral, como já foi dito em um momento anterior. Letra e música se misturam, amalgamando-se em uma coisa só. Concordamos com Charles Perrone quando nos diz que:
Charles Perrone, em
a redondilha, o decassílabo, o alexandrino ou o verso-livre, por menos impositivos e acentados, permitem ao músico inventar combinações de ritmo musical distinto do poema mas conseqüente com ele, outras medidas poéticas são mais exigentes e impõem ao compositor motivos e ritmo e de movimento. (ANDRADE:
1991, p. 74) A avaliação de um texto musical separado de sua música pode ser válida em muitos casos, mas será sempre arbitrária ou incompleta. Tanto a composição como a análise de uma letra podem ser afetadas de várias maneiras pela melodia. Algumas dessas possibilidades são um certo intervalo ou valor temporal (duração) que faz com que uma palavra ou frase se destaque, o fortalecimento de uma idéia ou expressão no movimento das notas musicais, e a preferência por uma vogal mais alta que
corresponda a um tom mais alto. Quando se avalia a estrutura, o significado e a efetividade poética da letra de uma canção, é preciso considerar como o fluxo das palavras está arrumado para a entonação harmoniosa e se as características melódicas têm algum efeito notável sobre o texto.
(PERRONE: 1988, p.12) Letras e letras da MPB, vai nos falar sobre a importância da análise das letras da MPB, levando em consideração esta relação intrínseca entre letra e música. Para ele, a apreciação das letras da canção deve ser feita de maneira integral em suas dimensões auditivas, na inter-relação dos signos verbais e acústicos. Perrone nos diz que a relativa complexidade de uma composição pode influenciar a análise do seu texto. Tendo o ouvinte, o leitor; enfim, o analista da canção, de levar em consideração, para a interpretação coerente desta, as estruturas musicais e seus graus, tanto os mais rudimentares quanto os mais sofisticados, aumentando ou diminuindo, assim, a complexidade da interação entre texto e música; os arranjos vocais, de corda e sopro, que podem fornecer para uma canção uma ênfase diversificada em sua relação com a semântica do texto
As letras das canções são mais diretamente comparáveis com a lírica através dos recursos retóricos da poesia e dos seus usos das figuras de linguagem – podendo empregar qualquer recurso poético ou figura de linguagem. Como por exemplo, a decomposição de palavras, justaposições de morfemas e concatenação de fonemas, como foi comumente feito pela Poesia Concreta. Podem também abranger a disposição visual do texto, modificações na ortografia e outros aspectos de orientação da escrita. Os cantores e compositores dispõem de alguns recursos a mais, como a possibilidade de utilizar de técnicas como a superposição de vozes, o intercâmbio entre voz e instrumento, ou modificações sugestivas de pronúncia para alcançar efeitos de que na poesia livresca o poeta não dispõe. Para Perrone,
Um fato importante que devemos ressaltar é que a análise da canção sem a consideração de sua música iria, certamente, em vários casos, não se sustentar enquanto poema, revelando-nos assim, sua inferioridade comparada ao poema propriamente dito. Isso, talvez, até mesmo pelo fato da letra da canção estar tão intrinsecamente ligada a sua musicalidade que seu ouvinte acaba tendo grande dificuldade de dissociar a música da letra. Quando um ouvinte lê uma letra de uma canção, logo vem em sua mente a música. No entanto, várias letras de canções podem figurar, sem nenhum favor, ao lado dos melhores textos poéticos contemporâneos. Como nos diz Perrone "considerar a natureza peculiar do lirismo musical não exclui, todavia, uma comparação frutífera com a prática literária". (PERRONE: 1988, p.15).
Outro fator importante que nos demonstra a possível relação entre música e poesia é o fato dos compositores da MPB terem impressas suas letras musicais nos encartes de seus discos. Os textos musicais impressos podem demonstrar a vontade do compositor popular de ser lido, utilizando-se de um novo artifício para se comunicarem com seu público. A impressão de suas letras não pode ser vista simplesmente como um artefato utilizado somente para que seus ouvintes possam decorá-las mais rapidamente. Pois quando essas letras são impressas utiliza-se de recursos, muitas vezes sofisticados, para demonstrar sua qualidade artística, como por exemplo: a utilização do espaço em branco, as citações em epígrafes, junções ou separações de palavras – recursos gráficos das mais variadas formas –, demonstrando-nos uma grande pertinência artística e literária, como poderemos ver mais adiante com a canção "As vitrines"
a avaliação literária dos textos de canção leva, inevitavelmente, à tarefa espinhosa de descobrir modos de aproximar as letras musicais da manifestação escrita. Uma letra pode ser um belo poema mesmo tendo sido destinada a ser cantada. Mas é, em primeiro
lugar, um texto integrado à composição musical, e os julgamentos básicos devem ser calcados na audição para incluir a dimensão sonora no âmbito de análise
. Mas se, independente da música, o texto de uma canção é literalmente rico, não há nenhuma razão para não se considerar seus méritos literários. A leitura da letra de uma canção pode provocar impressões diferentes das que provoca sua audição, mas tal leitura é válida se claramente definida como uma leitura. O que deve ser evitado é reduzir uma canção a um texto impresso e, a partir dele, emitir julgamentos literários negativos. (grifos nossos). (PERRONE: 1988, p.14) , de Chico Buarque. Segundo Perrone, para mostrarmos a semelhança entre literatura e música popular, é preciso: referir os temas, as alusões, as fontes, as figuras de linguagem etc. sem desfigurar a totalidade músico-poético original. Um estudo da interseção das séries literária e musical gira inevitavelmente em torno dos aspectos textuais, incluindo a dimensão secundária do texto musical como o artefato impresso. A avaliação literária do texto não implica uma completa apreciação estética da canção. Os poemas escritos e as letras podem ser considerados como subdivisões da categoria geral da poesia em seu sentido amplo, um texto versificado com beleza de expressão e pensamento
. (PERRONE: 1988, p.16) João Cabral, em depoimento sobre a adaptação de
O resultado de grande sucesso, segundo João Cabral, se deu pelo fato da música de Chico Buarque respeitar integralmente o texto de seu Auto. Segundo João Cabral, a música segue cada verso, no ritmo total, crescendo ou não, de cada parte do poema, não sobrepondo a música ao poema, fazendo uma música inteiramente apropriada ao texto. Coisa que, em geral, não é comumente feita pelos compositores. Quando põem música em poemas colocam a música nos versos de maneira aleatória, retirando versos dos poemas ou modificando estes, fragmentando ou complementando versos de maneira arbitrária.
Sobre a importância da musicalização da poesia, João Cabral continua seu depoimento dizendo que a música popular pode ajudar enormemente a poesia:
não digo no sentido desta poesia vir a ser melhor, mas no sentido de aumentar a propagação da poesia . Eu tenho a impressão de que um disco com os trabalhos do Carlos Drummond de Andrade bem musicado ia fazer de Drummond um homem tão conhecido no Brasil como Chico Buarque e Gilberto Gil. Acho que seria da maior importância que os compositores populares musicassem os poemas mais musicáveis, ou menos musicáveis de nossos poetas modernos. (Apud SANT’ANNA: 1978. p.180)
A respeito da música colocada em
adivinhar qual seria a música interior de João Cabral, quando ele escreveu o poema. Da mesma forma, quando vou botar uma letra na música de Tom, por exemplo, eu tento adivinhar o que ele quis dizer quando fez aquela música, tento recriar o momento de criação do meu parceiro. (Apud SANT’ANNA: 1978, pp.124-5)
Em vários depoimentos dados por Chico Buarque, ele sempre reitera que, na maioria de suas composições, letra e música são feitas conjuntamente. Nunca uma música pronta ou uma letra pronta, para depois ser completada. É uma criação só, música e letra nascem juntas. Quando as composições são feitas em parceria, a letra é criada a posteriori, nunca como um poema isolado à espera de ser musicado. Portanto, Chico Buarque não tem a preocupação de fazer letras exclusivamente para serem lidas, mas para serem ouvidas e cantadas. Ele não tem a intenção de ser considerado um poeta, mas sim um compositor de música popular.
No entanto, a postura do autor diante de suas canções não impediu que estudiosos da literatura conferissem às letras de suas canções
Chico Buarque está consciente do estreito relacionamento entre letra e música, e para alguns críticos ele pode ser considerado um "poeta menor", pelo fato de não ser um poeta de livro; como também foi considerado Vinícius de Moraes, um poeta de livro que migrou para a música popular. No Brasil, como estamos vendo no decorrer deste ensaio, a MPB pode ser considerada como uma arte à parte devido à relevância com que se impõe no cenário nacional.
O que notamos é que a união entre música e poesia é extremamente frutífera. Desde 1968, a música popular brasileira não é mais um fenômeno apenas sonoro, mas também um produto com dimensões da escrita poética e da cultura em geral. Uma constatação disso está no interesse com que críticos, professores universitários das mais variadas áreas do conhecimento – desde a literária propriamente dita, como da sociologia, da antropologia, da história, etc. – começam a estudar a
Romano de Sant’anna, estendendo-se "não apenas o conceito de música popular, mas o de literatura e, consequentemente, o de interpretação do texto." (SANT’ANNA: 1978, p.180)
Nos anos 60/70, a Música Popular Brasileira se torna de grande importância para o cenário poético e cultural brasileiro. Segundo Augusto de Campos, para estudar a cultura brasileira contemporânea "se quiserem compreender esse período extremamente complexo de nossa vida artística os compêndios literários terão que se entender com o mundo discográfico. No novo capítulo da poesia brasileira que se abriu a partir de 1967, tudo ou quase tudo existe para acabar em disco." (Apud PERRONE: 1988, p.19)
As letras das canções da MPB são invadidas pela poesia e até mesmo em alguns momentos se sustentam independentes do contexto musical. Augusto de Campos segue seu argumento dizendo que, em fins da década de 60, a poesia brasileira começa a cantar, e uma das razões para a apreciação literária dos compositores é que "a poesia da música popular foi melhor do que a poesia escrita". (Apud PERRONE: 1988, p.20)
A elaboração artística das letras da MPB se tornou evidente para os críticos literários, chegando alguns destes a pensar que os poetas desta geração optaram pelo veículo musical (o disco, o rádio, a televisão) devido à superioridade comunicativa dos meios audiovisuais em relação aos meios escritos. O que ocorre é que os novos meios de comunicação vieram suprir o que a cultura tradicional, como modo de expressão da cultura erudita e letrada, nunca levou em consideração: as pessoas que não lêem livros. Está aqui uma grande relevância da MPB, ainda mais num país como o Brasil. A MPB exerce um papel muito amplo, normalmente legado às instituições de ensino e da leitura em geral, o de educar, de proporcionar o prazer estético e de possibilitar consciência crítica às pessoas. E conclui Augusto, "toda uma geração de bons poetas escolhe a música popular e não o livro como canal de comunicação". (Apud PERRONE, 1988: 21).
Entre vários compositores da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, etc., Chico Buarque tem sido o mais aclamado entre todos, tanto por parte dos críticos musicais quanto pelos críticos literários. Afrânio Coutinho chega a fazer a seguinte declaração a respeito de Chico Buarque: "A meu ver o maior poeta da geração nova é
Chico Buarque de Holanda. É preciso não esquecer que sua música veicula ou se associa a uma das mais altas e requintadas formas de poesia lírica.". (Apud PERRONE: 1988, p.39)
Chico Buarque tem o completo domínio das técnicas do fazer poético, diferentemente dos compositores da Música Popular Brasileira dos anos 30 que apresentavam defeitos formais em suas letras musicais. Uma situação que é facilmente compreensível, pois como nos diz Beatriz Borges: "o jargão que contém normas, que nem Cartola, nem Nelson, nem nenhum sambista controla, nem poderia, ocupando a posição [social] que ocupam." (BORGES: 1982, p.51).
Um dos exemplos dessa falta de domínio das técnicas da poesia, que Beatriz Borges nos dá, é a canção de Carlos Cachaça, "As flores e os espinhos" na qual o compositor começa com a forma de tratamento "você" para terminar com a segunda pessoa:
Enquanto houver flores em
você
seu jardim não vai se lembrar dos meus carinhos ...................................................................
e hoje por sonh
despre
(grifos nossos)
ares com a riqueza zas minha pobreza... São "erros" que não diminuem a força poética da letra, mas atestam o lugar social do autor. Provavelmente, o compositor ao lidar com o texto escrito (da cultura erudita) tenta expressar sua emoção vinda da oralidade (da baixa cultura) que é seu verdadeiro mundo, se confunde, atropelado pela norma gramatical que a cultura letrada impõe a quem vai se expressar pela escrita.
Chico Buarque é um compositor que tem a sua origem na classe média intelectual. É filho de Sérgio Buarque de Holanda, um intelectual respeitado em todo o país. E por isso, além, é claro, por seu próprio mérito, tem o domínio do registro lingüístico culto e de sua literatura, fazendo uso desses elementos, juntamente com os registros populares, para a construção de suas canções.
É bom frisar aqui que Chico Buarque já sofreu várias criticas pelo fato de originar-se da elite intelectual e burguesa e falar em suas composições das pessoas e dos
problemas do povo. Críticas vindas, com certeza, de um pensamento radical de esquerda, que achava que só um operário poderia falar de um operário, ou só um camponês poderia falar do camponês, etc., porque somente um pessoa que realmente vivesse aquilo que é dito na obra de arte poderia expressar com propriedade suas experiências. Trata-se de uma crítica reacionária de esquerda que impede o princípio básico da literatura ou de qualquer outra expressão artística, que preza a imaginação e a liberdade para expressar artisticamente o que quiser. No entanto, esse tipo de crítica (proveniente também de críticos burgueses, já que estes tinham escolaridade, acesso à jornais etc.; coisa que o povo não tem) não afetou em nada a obra de Chico Buarque, que nunca deixou de falar, em suas canções, do povo e de seus problemas.
Segundo Perrone, o conteúdo literário das canções de Chico origina-se
No entanto, é importante salientarmos que a obra poético-musical de Chico não existiria se não estivesse ligada a uma tradição do samba, anterior ao seu surgimento. Nomes como Ataulfo Alves, Vinícius de Morais, Noel Rosa (a quem Chico é incansavelmente comparado), Lupcínio Rodrigues, Ary Barroso, Herivelto Martins, entre outros, foram referências fundamentais para que Chico Buarque elaborasse sua obra.
Sua discografia alcança hoje trinta e dois discos gravados. O autor conseguiu, como compositor, uma maior penetração na população brasileira do que qualquer grande poeta da atualidade. É claro que isso se dá em grande parte pelo fato da música ser um veículo muito mais acessível e ligado aos meios de comunicação de massa. Além do fato de que, também, o Brasil é um país de baixo índice de leitura por motivos já conhecidos por todos: a baixa escolarização e o não incentivo à leitura.
Surgido nos anos sessenta, vencedor de festivais de música popular com composições como "A banda", "Roda viva", Chico Buarque trilhou caminhos tanto em sua carreira de cantor e compositor, quanto na área literária propriamente dita. Como
teatrólogo escreveu:
Sendo Chico Buarque integrante de uma geração que sofreu intensa repressão (principalmente no período do Governo Médici), sua obra poético-musical não poderia deixar de espelhar toda essa angústia, a impossibilidade de opinião a que a censura obrigava as pessoas. Mesmo não havendo, em muitas músicas suas, o protesto e a contestação que se imaginava, e mesmo que, por força das circunstâncias, as pessoas não pudessem se expressar livremente, Chico tornou-se o porta voz de um povo que não podia falar – apesar de suas músicas "não serem políticas", como ele sempre declara. Podemos notar em "Apesar de Você"
Uma prova disso é a criação do
Julinho da Adelaide é, na verdade, um pseudônimo criado para burlar a censura, já que depois que Chico Buarque volta para o Brasil, em 1970, é um dos compositores mais visados pelos órgãos da censura. Qualquer canção que trouxesse o nome de Chico Buarque como autor era analisada com mais rigor. Chico chegou a declarar nos jornais que a cada três canções mandadas à censura, apenas uma era liberada. Em alguns casos a censura era política e em outros era moral – reafirmando, segundo Adélia Meneses "aquele velho esquema de qualquer ditadura, a aliança da repressão política com a repressão sexual". (MENESES: 1982, p.38)
Julinho da Adelaide foi criado por Chico Buarque não só como um nome que seria apresentado em lugar do seu, mas como um heterônimo. Assim como Fernando Pessoa criou seus personagens-poetas e lhes conferiu vida própria, Chico cria Julinho e lhe confere vida, uma mãe, um irmão, enfim, uma história.
Em setembro de 1974, Chico assume o personagem Julinho e dá uma famosa e longa entrevista a Mário Prata e Melchíades Cunha Jr. para o jornal
Na entrevista, Julinho além de falar de sua vida e de suas canções, que segundo ele estavam sendo gravadas por compositores importantes como Chico Buarque, expõe a "teoria do samba duplex": aquele que pode mudar de sentido se for necessário. Vejamos um pequeno trecho da entrevista em que Julinho tenta explicar como seria construído o samba duplex:
de seu domínio da rima e do ritmo, de sua cuidadosa manipulação de efeitos sonoros, de sua coerente forma de estruturar o texto poético e seleção lexical, do uso de metáforas e símbolos, da sutileza no uso de figuras de linguagem e nas idéias e da percepção profunda de fenômenos psicológicos e sociais.
(PERRRONE: 1988, p.39) Calabar, o elogio da traição, em parceria com Ruy Guerra, a tragédia Gota d’água (co-autoria com Paulo Pontes), a peça Ópera do Malandro e Os saltimbancos (esta última, peça infantil e disco recriação feita por Chico do original italiano de Enriquez e Bardotti), além de Chapeuzinho amarelo. E sua última criação teatral, o musical Cambaio, feito juntamente com Edu Lobo, Lenine, Adriana e João Falcão. Como romancista escreveu Fazenda Modelo, Estorvo e Benjamim. Atividades que desenvolve paralelamente à música. Sua produção artística pode ser considerada como uma das mais respeitáveis do Brasil. Ainda que Chico Buarque não tivesse se enveredado pela obra literária propriamente dita, a sua obra poético-musical para muitos, sua produção artística mais frutífera, já seria, por si só, responsável pela destacada posição que ele desfruta no cenário artístico nacional. , um exemplo do seu vasto cancioneiro, canção que ele diz que não fez com a intenção de protesto que lhe atribuíam, mas que pode ter tanto o sentido político quanto amoroso. É bem verdade que temos de descontar dessa sua afirmação a sua técnica de "pistas e despistamento" (técnica que consiste em veicular uma série de informações contraditórias – ou contra-informações – em entrevistas, deixando os leitores e entrevistadores sem saber qual seria a informação verdadeira). Preocupado com a censura, durante algum tempo, Chico diz que usou mais a sua criatividade para driblá-la do que propriamente para construir suas canções. Samba Duplex pelo compositor. Chico cria o personagem Julinho da Adelaide, compositor carioca, malandro, autor de três canções: "Acorda amor" (que possui grande semelhança com a prisão de Chico, em 1968), "Jorge Maravilha" e "Milagre Brasileiro", todas as três de 1974. Última Hora. Nessa entrevista, Julinho conta toda a sua história: era filho de uma moradora da favela, a Adelaide de Oliveira, que entre os maridos que teve, casara-se com um alemão de sobrenome Kuntz – motivo pelo qual se orgulhava de ter um meio-irmão loiro, o Leonel. Esse irmão o explorava, mas Julinho o considerava seu protetor. (
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J.A) Eu acho bobagem a pessoa falar que a censura prejudica, quando eu acho que o negócio é fazer samba, tem que fazer muito samba mesmo, entende? Eu faço muito samba, quer dizer, faço vários por dia mesmo (...) e faço samba duplex também. (...) E quase todos são duplex. (...) São sambas que você pode mudar, entende? (grifos nossos) J.A) Cada vez que surge um problema, para isso que eu fiz o samba duplex, que eu pretendo, inclusive, patentear, porque é uma idéia minha que se puder patentear ... U.H) Esse samba duplex, que eu acho que é uma obra aberta, que é o samba que o ouvinte completa em casa. Você tem a oportunidade de atingir uma faixa muito grande de ouvintes (...) É um samba que dá várias leituras, em qualquer nível. J.A.) Não, aí é diferente. O samba duplex não se propõe a isso. Não é uma obra aberta, que é o samba que o ouvinte completa em casa. É uma obra aberta até passar pelo filtro. Quer dizer, ele é duplex, quando eu componho. Quando chega nos canais competentes, o samba assume uma das duas versões. (grifos nossos) U.H.) Eu tenho a impressão que o samba duplex vai ser muito bem recebido no seio da família brasileira. É a partir dessa pequena (e um pouco confusa) teorização feita por Julinho da Adelaide/Chico Buarque que podemos compreender essa duplicidade que há no discurso do compositor. Vale à pena mencionarmos a canção "Festa imodesta" que Caetano Veloso compôs em homenagem às
Numa festa imodesta como esta
vamos homenagear
todo aquele que nos empresta a sua testa
construindo coisas pra se cantar
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
que o otário silencia
toda festa que se dá ou não se dá
passa pela fresta da cesta e resta a vida
(grifos nossos)
Essa canção retrata o compositor (no caso Chico) como um ser que malandramente utiliza a linguagem da fresta para dar o seu recado; daí se conclui que "para se ‘pronunciarem’ coisas, em determinadas situações históricas, só sendo malandro; o otário simplesmente ... silencia" (MENESES: 1982, p.75)
Um exemplo claro da teoria do
Quando Chico Buarque decidiu voltar ao Brasil, depois de uma temporada "um tanto forçada" de um ano e meio na Itália, recebeu de Vinícius de Morais um conselho: já que ele havia decidido voltar ao Brasil, que voltasse fazendo muito barulho. Eis que nasce "Apesar de Você", que segundo o compositor era um samba feito com os nervos,
bem a cara dos anos de 1970. Neste ano, o governo no Brasil era exercido pelo General Garrastazu Médici. Seu governo foi marcado por grandes violências policiais, um grande aparelho repressor e a censura era uma das armas mais letais de que dispunha o general.
Assim que Chico escreveu a canção, enviou-a para a censura para que fosse examinada. O compositor confessou mais tarde que somente por malcriação "e para fazer barulho" é que havia submetido a canção à censura, certo de que não passaria. Mas passou, e foi gravada em compacto juntamente com "Desalento", um samba feito em parceria com Vinícius de Morais.
"Apesar de Você" começou a tocar nas rádios, e por pouco não se torna hino contra a repressão. Para quem havia sido vaiado quase unanimemente há dois anos atrás, Chico volta em alta para o Brasil.
Um mês depois do lançamento e já caminhando para as 100.000 cópias vendidas, o samba foi proibido e o disco recolhido das lojas. Há quem afirme que a súbita censura veio depois de uma notícia que "Apesar de Você" era uma "homenagem" ao presidente Médici.
Ao pensarmos a respeito desta canção, notamos que no primeiro momento Chico Buarque consegue o que nem ele acha possível: que a canção fosse liberada pelos órgãos da censura. Isso se deu porque o censor não identificou o "você" da canção com o presidente General Medice.
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
É essa a estratégia que Chico Buarque vai utilizar para burlar a censura da época, compondo canções que podem ser lidas de duas formas, como um discurso lírico (muitas vezes amoroso) ou como um discurso político.
Portanto, a canção foi liberada porque foi entendida ou lida (como propõe o samba duplex) como um discurso lírico-amoroso. Mas num momento posterior foi
proibida porque foi interpretada de forma inversa, como um discurso político e de oposição à ditadura. Nesse momento o "você" foi entendido como o General Médici.
Com essas possibilidades de interpretação, Chico Buarque nos dá a possibilidade de nos deliciarmos com uma riqueza artística que poucos compositores ou poetas nos proporcionam, cabendo ao ouvinte ou ao leitor interpretá-la a sua maneira.
Ao ser levado ao interrogatório depois da censura de "Apesar de Você", Chico Buarque ouviu dos militares a insistente pergunta: "Quem é esse você?". O compositor malandramente respondeu que era uma mulher muito mandona e autoritária. A partir desse episódio, a censura não deu mais sossego a Chico Buarque, o que fez com que o compositor pusesse sua arte a serviço da malandragem musical, confessando mais tarde que "houve épocas em que sua criatividade estava quase mais voltada para driblar a censura, do que propriamente para a música." (MENESES: 1982, p.39) "Apesar de Você" representa o ápice desse drible desconcertante que levou a censura do General Médici.
As questões levantadas, aqui, na canção "Apesar de você", no que diz respeito à forma como o compositor, com habilidade, conseguiu driblar a censura com o
O engajamento político de Chico Buarque salta aos olhos de qualquer ouvinte ou leitor de suas canções. No entanto, é importante ressaltar que em seu universo poético não encontramos um discurso somente político. A poesia de Chico Buarque faz uma análise critica da sociedade, coloca-se contra a ideologia oficial e contesta a insensibilidade do sistema para com os humildes. "Assim, a consciência político-social em sua obra é evidente. O poeta está consciente de sua função político-social e faz de sua poesia o instrumento de denúncia da realidade, das injustiças e das desigualdades sociais." (CESAR: 1993, p.83)
Chico Buarque é estigmatizado como um músico essencialmente político. Mesmo o compositor tendo negado esse propósito várias vezes, as suas canções são
normalmente lidas apenas pelo viés político, leitura que reduz outras possíveis facetas de sua obra. O que pretendemos mostrar é que Chico Buarque inegavelmente transita pelo universo da crítica política, mas nem por isso deixou de lado a experiência formal e foi panfletário, como muitos fizeram, mesmo os "poetas de livro" considerados maiores, na década de 60/70 – como bem nos mostram os poemas do
A própria herança musical de Chico Buarque é propícia à contestação. O samba, com o seu ritmo sensual que desinibe o corpo com seus movimentos provocantes, contesta a moral burguesa e religiosa de um país que sobrevive mais da falsa moral do que propriamente da moral enquanto valor ético e organizador de uma sociedade. O samba e o carnaval, originados da mistura dos negros da favela com a classe média intelectual, são elementos contestadores e libertadores por natureza. A música de Chico Buarque une-se a essa tradição e juntas, libertam, conscientizam e trazem a possibilidade de alegria a um povo tão sofrido como o brasileiro, mesmo que seja em um momento fugaz e utópico
Todo esse ecletismo, toda essa criatividade também se revela no grande número de gêneros musicais que povoam a sua obra musical. Assim, temos o baião e o
Após estas breves considerações, partiremos para as análises poético-musicais de algumas canções de Chico Buarque a partir de seu diálogo com a tradição literária.
Uma das freqüentes referências ao relacionar a obra poético-musical de Chico Buarque com a literatura é feita através da comparação de suas canções às cantigas trovadorescas. Nas canções de Chico Buarque é possível notar, em várias letras, uma aproximação com a poesia medieval: as cantigas de amigo, gênero lírico fundamental do cancioneiro peninsular da Idade Média, na qual o trovador se disfarça de mulher e, normalmente, se queixa ao amigo. A amiga ou amada é quem se manifesta. Esse tipo de
composição lírica é sublinhada, muito freqüentemente, pela presença de um refrão e se inspira na vida rural e popular. Conforme assinala Massaud Moisés, a cantiga de amigo é "escrita igualmente pelo trovador que compõe cantigas de amor, e mesmo as de escárnio e maldizer, este tipo de cantiga focaliza o outro lado da relação amorosa entre ele e uma dama: o fulcro do poema é agora representado pelo sofrimento amoroso da mulher, via de regra pertencente às camadas populares". (MOISÉS: 1970, p.24)
Nas composições de Chico Buarque notamos com freqüência este tipo de produção poética, como por exemplo em: "Com açúcar e com afeto", "Sem fantasia", "Pedaço de mim" e entre outras, "Olhos nos olhos", canção que nos fala claramente do sofrimento, da angústia e dos desenganos de uma mulher:
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci.
Estas construções da poesia medieval feitas por Chico Buarque, são incansavelmente citadas em livros didáticos que desejam falar do trovadorismo e das cantigas de amigo. São reconhecidamente poemas trovadorescos modernos.
Embora Chico Buarque seja essencialmente um compositor popular, podemos notar, a partir de suas "canções trovadorescas", suas refinadas metáforas e de suas elaboradas construções poéticas, que este transita no universo da cultura erudita. "Aliás, esta é uma característica de sua poética, o estabelecimento de uma relação reversível, por isso mesmo enriquecedora, entre o popular e o erudito". (MASSI: 1991, p.194).
Chico Buarque é hoje um compositor que não é apenas ouvido. Há exemplos claros disso: um deles é o fato de que ele foi o primeiro compositor brasileiro a incluir nas capas de seus discos suas letras musicais. Outro exemplo é o fato dele estar incluído na coleção
Este diálogo pode ser notado em "Sabiá", canção que parodia a "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias – poema parodiado por grandes poetas brasileiros e em "Rosa dos Ventos", canção que relaciona-se diretamente à musicalidade de trechos de
Literatura Comentada. Além, é claro, de seu frutífero diálogo com a tradição literária. O Romanceiro da Inconfidência,
Apesar de Chico Buarque nunca ter publicado um livro de poemas, ele escreveu várias músicas para representação teatral, um meio pelo qual suas canções tornaram-se parte da literatura. Nos anos 60, o compositor estréia como dramaturgo com a peça
Para Charles Perrone,
Após mostrarmos algumas das referências literárias presentes na obra de Chico Buarque, podemos nos deter a um tema mais delicado: as relações homológicas existentes entre a poesia e a Música Popular Brasileira e a questão da letra musical ser ou não considerada poema.
As canções (letras musicais) ora ganham autonomia e
Estas foram algumas questões que a
A obra poético-musical de Chico Buarque é marcada pela presença de elementos utilizados na estrutura da poesia. Em "Paratodos", temos a homenagem a todos os brasileiros através de citação de vários estados nacionais: São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia; e de muitos músicos e compositores do país como Dorival Caymmi, Jackson do Pandeiro, Vinícius de Morais, Nelson Cavaquinho, Tom Jobim (Antônio Brasileiro), entre outros. Este último, talvez possa ser visto como uma metonímia representando todos os outros músicos que não estão presentes na canção.
"Foi Antônio Brasileiro/que soprou esta toada" que o poeta diz cobrir de redondilhas. Redondilha, verso de cinco (redondilha menor) ou sete (redondilha maior) sílabas poéticas. Podemos notar que toda a canção é construída por uma métrica retirada da poesia, a redondilha maior. Chico se utiliza, na construção de suas canções, de elementos estritamente pertencentes à estrutura poética tradicional, portanto é visível a
união entre a poesia e a música que Chico soube utilizar com perfeição para construção de sua canção. Neste momento poesia e música dialogam harmoniosamente.
as muitas canções que Chico Buarque compôs para peças dramáticas são de suma importância no que diz respeito ao caráter literário de sua obra. Um texto musical torna-se literatura no sentido estrito de arte verbal em forma impressa – se ele forma parte de uma peça publicada como obra dramática.
(PERRONE: 1988, p.29) status poéticos, ora textos poéticos ganham nova vida através de versões musicais. São questões que inquietam os estudiosos das relações entre música e poesia. Augusto de Campos vai tentar amenizar esta questão forjando o termo "palavras-canto", para expressar a união entre música e poesia. O que não seria apenas música, nem apenas poesia. No entanto, devemos nos perguntar até quando e como a união entre a música e a poesia funciona? Qual o papel que cada uma das partes desempenha nessa articulação? É possível que depois de unidas, elas possam sobreviver sozinhas, ganhando independência e autonomia? Qual a relação que essas "palavras-canto" guardam com suas matrizes musicais e poéticas? Até que ponto a palavra se preserva enquanto poesia e quando se embrenha como o canto? Revista Livro Aberto fez a alguns poetas, letristas, letristas-poetas ou poetas-letristas, professores de Literatura e intelectuais. Perguntas para as quais seria impossível uma resposta definitiva, mas sim reflexões e discussões a respeito do tema. É o que pretendemos também neste ensaio. O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
Meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antônio Brasileiro
Foi Antônio Brasileiro
Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas
Nestas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavaleiro
Contra fé, moléstia, crime
Use Dorival Caymmni
Vá de Jackson do Pandeiro
Vi cidades, vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho
Para um coração mesquinho
Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto.
Viva Erasmo, Ben, Roberto
Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethânia, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista
O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro.
Outra canção em que podemos notar a apropriação que Chico Buarque faz das formas comumente utilizadas na construção da poesia é "Essa moça tá diferente". Nesta canção, as estrofes são estruturadas em quadras, a forma mais divulgada da poesia popular.
Essa moça tá diferente
Já não me conhece mais
Está para lá de pra frente
Está me passando pra trás
Esta moça tá decidida
a se supermodernizar
Ela só samba escondida
Que é pra ninguém reparar
Eu cultivo rosas e rimas
Achando que é muito bom
Ela me olha de cima
E vai desinventar o som
Faço-lhe um concerto de flauta
E não desperto emoção
Ela quer ver o astronauta
Descer na televisão...
Essa moça é a tal da janela
Que eu cansei de contar
E agora está só na dela
Botando só pra quebrar...
Esta é um canção metalingüística, na qual o compositor reflete sobre o seu próprio trabalho. Chico Buarque é considerado um "continuador" da tradição dos grandes sambistas brasileiros, como Noel Rosa, Pixinguinha, Cartola, Ismael Silva, Ciro Monteiro, etc. A alusão que Chico faz a seu próprio repertório são reflexões acerca da mudança de comportamento musical dos anos 60, que é invadido pelas guitarras elétricas e pelas letras experimentais, certamente provocadas pelas invasões da
Tropicália. Chico, que permaneceu próximo à estética da Bossa Nova e dos sambistas "clássicos", reflete, neste momento, sobre estas transformações sofridas pela MPB.
Uma canção, entre muitas, em que podemos notar uma relação homológica entre letra e música é "Baioque". A canção é iniciada em ritmo de Baião em que são introduzidos imagens e elementos característicos do Nordeste brasileiro – de onde se origina o Baião:
Quando eu canto
Que se cuide
Quem não for meu irmão
O meu canto
Punhalada
Não conhece perdão
Quando eu rio
Quando eu rio
Rio seco
Como é seco o sertão
Meu sorriso
É uma fenda
Escavada no chão
Quando eu choro
Quando eu choro
É uma enchente
Surpreendendo o verão
É o inverno
De repente
Inundando o sertão
Quando eu amo
Quando eu amo
Eu devoro
Todo o meu coração
Eu odeio
Eu adoro
Numa mesma oração
Quando eu canto
Logo após, o que poderíamos chamar de segunda parte da canção, Chico Buarque muda o ritmo da canção de Baião para o Rock, como sugere o título da canção:
Bai = Baião
⇒ Baioque
oque = Rock
Juntamente com a mudança de estilo musical, há a transformação dos elementos descritos na canção anteriormente. Neste momento, as imagens são urbanas, como: Ipanema, cinema e televisão. Elementos apropriados para o ritmo do rock urbano:
Mamie, não quero seguir
Definhando sob o sol
Me leva daqui
Eu quero partir
Requebrando um rock and roll
Nem quero saber
Como se dança o baião
Eu quero ligar
Eu quero um lugar
Ao som de Ipanema, cinema e televisão.
Além de elementos formais e métricos utilizados como parte integrante para a construção de suas canções, Chico Buarque também vai utilizar, em suas letras, vários recursos estilísticos, como: onomatopéias, elipses, rimas ricas, neologismos, metáforas, personificações, aliterações, metonímias, etc. Uma canção, entre seu vasto repertório, na qual notamos inúmeros recursos estilísticos é "Pedro Pedreiro". Nesta canção, o que percebemos de imediato é a afinidade direta entre nome (Pedro) e sobrenome (Pedreiro) do personagem, estabelecida pelo morfema "pedr" que nos remete à pedra, ao que é fixo, sólido e imóvel. Convergindo então, com a estória da canção que nos fala de um migrante nordestino que pensa sobre sua vida, sugerido pelo neologismo "penseiro", enquanto espera o trem para ir ao trabalho.
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro Pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
E a gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Desde a ano passado
Para o mês que vem.
A repetição presente na construção da canção é um recurso importantíssimo utilizado pelo compositor para nos dar a sensação da espera angustiada de "Pedro". E também reforça a idéia inicial da imobilidade e fixidez da personagem que espera e não tem nenhuma possibilidade de alcançar a sua melhoria de vida:
Pedro pedreiro espera o carnaval
E a sorte grande do bilhete pela federal
Todo mês
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Para o mês que vem
Esperando a festa
Esperando a sorte
E a mulher de Pedro
Está esperando um filho
Pra esperar também.
Pedro pedreiro vive o drama das pessoas pobres do Brasil, onde os trabalhadores só vêem a possibilidade de melhora de vida através do carnaval, rito que se caracteriza pela inversão dos papéis sociais, possibilitando assim, a troca dos papéis hierárquicos existentes na sociedade. No carnaval, o pobre pode se fantasiar do que quiser: de rei, nobre, etc., sofrendo uma catarse proporcionada por um momento de liberdade e utopia que é característico desse rito. Além do carnaval, Pedro pedreiro espera como a maioria das pessoas pobres, ganhar na loteria para sair de sua condição de miséria. Pedro pedreiro representa a condição da vida trabalhadora do povo brasileiro.
Pedro pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o mundo
Maior do que o mar
Mas pra que sonhar
Só dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento para o mês que vem
Esperando um filho pra esperar também,
Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando a morte
Esperando o norte
Esperando o dia de esperar ninguém
Esperando enfim nada mais além
Da esperança aflita, bendita, infinita
Do apito do trem.
A repetição utilizada na construção da canção se dá em 60 versos. Além de representar uma grande espera temporal, nos dá também o sentido de angústia, na qual a personagem, após esperar tanto tempo e com tamanho sofrimento, desiste de esperar "quer ser pedreiro pobre e nada mais/sem ficar esperando, esperando, esperando".
Nos quatro últimos versos da canção, Chico vai utilizar mais alguns recursos estilísticos enriquecendo poeticamente a sua canção como a aliteração em "p", reforçando seus efeitos rítmicos. No último verso, que é repetido várias vezes, o compositor vai se utilizar da onomatopéia, reproduzindo sonoramente a locomoção do trem que Pedro pedreiro espera:
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro esperando o trem
Que já vem, que já vem, que já vem (...)
Os exemplos de elementos estilísticos comumente utilizados pela poesia contidos nas canções de Chico Buarque são inúmeros. A título de demonstração podemos citar mais alguns, como: "Construção", canção construída por quarenta e um versos de doze sílabas, os quais terminam sempre com uma proparoxítona, canção comparada à poesia de João Cabral. Em "Fado Tropical", temos introduzido, dentro da canção, um soneto. Em "Bárbara", as metáforas do Brasil e Holanda chegam a transformar-se em alegorias representadas pelas duas mulheres – Ana e Bárbara – da canção. Em "As vitrines"
passagem de uma mulher; aparecem, nesta canção, belíssimas imagens como as dos versos: "Nos teus olhos também posso ver/As vitrines te vendo passar". A letra desta canção – presente no LP
Poderíamos nos estender nos exemplos da poeticidade encontrados nas letras de Chico Buarque, o que nos custariam várias páginas, porque são inúmeros. A obra poético-musical de Chico Buarque é riquíssima, o compositor nos revela uma competência poética comparada à de grandes poetas brasileiros.
Todos os exemplos dados aqui demonstram o cuidado e o trabalho minucioso feito por Chico Buarque para elaborar suas composições. Cada mínimo detalhe é considerado importante, pelo compositor, para a realização plena de seu trabalho artístico. O compositor utiliza elementos estilísticos e formais da poesia para enriquecer suas composições, nos demonstra, assim, um domínio excepcional da arte poética ao lidar com as palavras e também da arte musical ao elaborar as composições para suas canções. E muito mais do que isso, nos revela com extrema sensibilidade poética e apuro formal elementos da cultura brasileira e de seu povo.
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